Biblia e Vegetarianismo

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Compartilho aqui um trecho do livro A Dieta do Rabino – A Cabala da Comida, do Rabino Nilton Bonder.


O primeiro princípio ecológico tem a ver, sem dúvida alguma, com uma sensibilidade mais acurada para com as formas de vida que nos são próximas. Esta primeira preocupação se concretiza em nossa relação com os seres vivos e sua utilização como alimento. Tudo indica que o ideal bíblico, por exemplo, era o vegetarianismo. A permissão para o abate dos animais é associada à fraqueza dos seres humanos e à esperança de que um dia esta situação possa modificar-se. O profeta Isaías vislumbrou e anunciou uma era em que “o leão, tal qual o boi, comerá palha” (Is. 11:6). Visão esta que é corroborada pelo Talmud:

“Adão não tinha permissão para alimentar-se de carne, como está escrito: ‘Veja, Eu te ofereço toda a semente ou planta que se encontra no solo… E a todos os animais da terra, a todos os pássaros dos céus, e a tudo que se arrasta pelo chão… entrego as plantas verdes como alimento’ (Gên.1:29).

Porém, no tempo dos filhos de Noé, a carne foi permitida, pois foi dito: ‘E toda criatura viva será tua para alimento’ (Gên. 9,3)”

(Talmud, Sanhedrin 59b)

Segundo esta interpretação, foi somente após o dilúvio, quando aparentemente a cobertura vegetal foi totalmente alterada, que a permissão para o abate animal surgiu pela primeira vez. Desde então, a carne se tornou objeto das maiores restrições e exigências para que fosse permitida a sua ingestão. De alguma forma, a carne passou a ser a fronteira mais avançada na tentativa de se manter a sintonia com a força vital, quando a necessidade obrigava a uma atitude aparentemente conflitante com esta força – o abate. Portanto, se lhe é possível passar sem alimentos de carne, esta situação parece ser a ideal. Diz o Talmud (Hul. 84a): “Uma pessoa deve manter-se afastada de carne a não ser que tenha um apetite muito especial pela mesma”. O rabino Nachmanides (séc. XIII) ensina, em sua obra “Deves tornar-te Sagrado”, que mesmo os de “especial apetite” devem praticar moderação” apesar de haver uma permissão explicita  para comer-se carne.

Se você não se abstém, deve moderar e mesmo assim seguindo restrições que têm por objetivo remediar esta violência contra a vida tanto no sentido prático como no de uma postura de conscientização. Para isto criaram-se leis severíssimas (Shechita) ao abate dos animais, que hoje constituem um universo ritual à parte.

A pessoa responsável pelo abate-ritual é treinada rigorosamente dentro das instruções da tradição, que incluem bênçãos e uma postura “religiosa” diante desta tarefa. É necessário que tal pessoa tenha maturidade (não seja menor de idade) e não tenha nenhuma desqualificação física ou mental que venha a influenciar seu trabalho. Dentre os princípios de respeito à vida, para que a carne se torne passível de ingestão (Kasher), é primordial que o animal seja abatido de forma menos dolorosa possível. Um método milenar, que se tem mostrado eficiente mesmo diante das inovações tecnológicas, regula o tipo de faca a ser usada e sua afiação nos mínimos detalhes. O abate deve ocorrer da maneira mais rápida possível, de um só golpe que corta o esôfago, traquéia, veia jugular e as artérias carótidas do animal, matando-o instantaneamente. Este método, que rapidamente elimina de 70% a 90% do suprimento de sangue levado ao cérebro, parece minimizar o sofrimento do animal. Se o animal se debate e custa a morrer, sua carne é considerada não-comestível.

Logo após a morte do animal, procede-se a um exame minucioso para saber se ele não possui nenhuma deformação ou doença que lhe seria fatal e que pudesse acabar sobre nossas mesas. Qualquer lesão interna do animal ou certos tipos de cistos tornam a carne não comestível.

Por trás destas leis de TIKUN HA-GUF (acerto de corpo) existem princípios de vida que devem ser levados adiante, complementados ou até repensados. Prova disto, de que só TIKUN HA-GUF ou as leis propriamente ditas não bastam, é o relato de S. Agnon sobre o que lhe contara o Rabino Shmuel Arieh:

“Na minha juventude vivi na vila de Koshilovitz, a mesma Koshilovitz que recebeu renome mundial por causa do Baal Shem Tov, que foi um shochet (um abatedor ritual de animais) nesta cidade antes que sua grandiosidade lhe fosse revelada. Lá encontrei um shochet, um ancião de mais de 80 anos. Eu lhe perguntei: “Você por acaso sabe de alguém que conheceu o Baal Shem Tov? Ele retrucou: ‘Nunca soube de nenhum judeu que houvesse conhecido pessoalmente Baal Shem Tov, mas sei de um não-judeu que o conheceu. Quando eu era jovem, costumava hospedar-me com um camponês que não era judeu. Sempre que eu ia jogar água sobre minha faca usada no abate ritual, o avô do camponês, um homem idoso de uns noventa ou cem anos, balançava sua cabeça. Eu pensava que era por causa de sua idade. Certa vez, porém, percebi que era em desaprovação ao que eu fazia. Perguntei: ‘Por que você meneia sua cabeça enquanto trabalho?’ Ele respondeu: ‘Você não está cumprindo sua tarefa direito. Israelkl (o Baal Shem Tov), antes de lavar a sua faca com água, a lavava com lágrimas'”.

(S.Y. Agnon, “Tear”, Schocken Books, 1966)

O abate animal não se descaracteriza desta realidade de que envolve uma morte. Este tipo de discernimento é imprescindível para que possam surgir compromissos para com a vida, mesmo que isso não signifique parar de ingerir carne. O importante é que este discernimento não seja piegas e que aborde apenas parte da violência deste mundo. Se fazemos isto somos levados a ser falsos “piedosos” e, em certa medida, exagerados. O princípio holístico é o de integração. Apenas quando nossa  postura contra a violência atinge, como um todo, níveis de incompatibilidade reais para com o “abate” é que se justifica a abstenção de carne. Ela é, portanto, não uma obrigação, mas um ideal. Pode Justificar-se até que você não mais queira justificar-se.

“…Certa vez, quando o mestre Rabi Ioshua Heschel se encontrava em uma de suas viagens de visita a seus discípulos, deparou-se com uma ladeira bastante íngreme. O rabino rapidamente desceu de sua carroça e subiu a ladeira a pé.

‘Santo Rabino’, disse seu ajudante, ‘por que o senhor desceu da carroça para subir a ladeira a pé?’

‘Porque’, disse o Rabino, ‘tenho medo de que o cavalo apresente uma queixa contra mim na corte celeste por não ter pena dele e tê-lo feito carregar-me nesta ladeira íngreme.’

‘E daí’, exclamou o ajudante, ‘acaso o senhor não venceria esta disputa nos termos de que um cavalo foi feito para servir aos seres humanos?’

‘Sim’, respondeu o rabino. ‘Não tenho dúvidas de que venceria, mas prefiro subir esta ladeira a pé uma dezena de vezes, a me ver envolvido num litígio com um cavalo'”

Para o vegetariano, comer carne não é um crime punível pelo qual somos condenados pelo Tribunal da Vida. É uma das leis da própria vida manter-se. Mas quando pode manter-se em seus próprios pés e subir a ladeira, o vegetariano é aquele que não quer ver-se num litígio com um boi ou uma galinha, apesar de que poderia encontrar bases para defender-se e vencer o caso.